Um dia daqueles

Depois de mais uma noite mal dormida, por conta do Llizarov* que usa na perna direita há pouco mais de cinco meses, Matheus de Lucca acorda, como toda boa manhã, ao som de Even Flow, vindo do despertador do celular, excepcionalmente, naquela manhã, às 7h50.
Ele levanta o tronco da cama (como quem faz uma única série de abdominal), senta-se, toma suas cápsulas de vitaminas diárias, pega o celular ao lado do travesseiro e o reprograma para um novo despertar, às 8h10, seu horário costumeiro.
O fato de ter adiantado o despertador 20 minutos mais cedo do que de costume, era para que não perdesse uma consulta médica, marcada para às 9h, agendada desde agosto passado.
Ao segundo toque de Even Flow ele enfim desperta; com certo sacrifício, misturado a uma preguiça matinal daquelas, estica-se para alcançar sua bermuda ao lado da cama; a veste e senta em sua cadeira de rodas. Depois de um asseio de gato básico, aguarda pela carona do irmão para deixá-lo no consultório. Opta desta vez em ir de muletas, e deixa a cadeira de rodas na portaria do prédio onde mora.
Ao entrar no edifício onde fica o consultório, percebe que havia faltado energia. Mesmo assim, segue adiante - com andar lânguido e sofrido - ainda por cerca de 40 metros, da portaria até a sala da médica. A espera pelo irmão lhe custou alguns minutos preciosos de seu dia!
Matheus chegou atrasado para a consulta cerca de 20 minutos. 20 minutos! Debruçou-se sobre a bancada da recepcionista, apresentou o cartão do plano de saúde, e mal havia finalizado o movimento para apresentar seu documento de identidade, a moça da recepção entoou: “Olha, eu vou ver se é possível lhe atender, porque estamos sem energia e tem muita gente pra hoje”. Simpático, Matheus respondeu que tudo bem.
O consultório estava mesmo lotado e, nele, não havia uma alma bondosa para lhe oferecer um assento, mesmo estando evidente o parelho de ferro encravado, de uma ponta a outra, na perna direita. Nenhum cristão sequer ofereceu lugar! E Matheus ficou ali mesmo, em pé, encostado na parede aguardando a hora em que a recepcionista - tão inútil quanto a um cotonete usado – tomasse a iniciativa de falar com a médica para saber se ele ia ou não ser atendido.
Na cabeça do pobre Matheus, havia uma mistura doida de pensamentos (bons e ruins). Ao mesmo tempo em que ele treinava a calma para entender a situação, caso perdesse a consulta; noutro instante, queria esmagar a cabeça da pobre moça da recepção com as suas muletas...
Sem muito que fazer, esperou por mais uns minutos, e logo veio a sentença: “Seu Matheus, olha, não vai dar pra lhe atender hoje”. Ele fitou a moça, como quem já esperava por aquela frase, e retrucou: “Ora, moça, tenha dó! Não é a senhora que está com 24 pinos encravados no osso da sua perna! Assim é fácil dispensar um paciente. Quer dizer que eu andei um quarteirão inteiro por nada?! Quero falar com a médica”, exigiu.
Matheus voltou à parede em que estava, em frente a sala da médica, aguardou o paciente da vez deixar o consultório e, num ímpeto desesperado, implorou da porta do consultório pelo atendimento naquela mesma manhã... Em vão!
Triste e desanimado, voltou para casa. Chegando lá, o porteiro logo anunciou a ele outra notícia nada agradável: “O elevador não tá funcionando, seu Matheus. Faltou luz”. Estafado, Matheus assentiu com a cabeça e se sentou na cadeira de rodas que, por sorte, já estava na portaria a sua espera. E ali ficou sentado até quase meio-dia quando, enfim, a luz voltou. Subiu, tomou um banho, sentou-se à mesa para almoçar e tirou uma sesta.
Minutos depois, Matheus estava em um shopping novo de sua cidade que ainda não conhecia. O ambiente era repleto de escadas, tanto de concreto quanto rolantes; depois de observar esse detalhe, sentiu-se afugentado em ter de subir e descer as escadas se quisesse ir aos andares superiores. Ainda no térreo, entrou em uma loja; mal sabia ele ao certo pelo o quê procurava. Ao sair, esqueceu as muletas na loja. Mesmo assim, partiu e enfrentou aquela profusão de escadas. Preferiu a de concreto.
Sentiu-se meio estranho ao caminhar. Mas, só percebeu que esquecera as muletas na loja quando alcançou - com uma glória abissal - o primeiro andar. Quis voltar. Olhou para baixo e por toda a imensidão do shopping ao seu redor, mas a vista, a partir daquele piso, parecia-lhe mais um labirinto que um shopping center. Eram muitas as escadas e muitas entrâncias estranhas, que não compreendia ao certo aonde aqueles corredores poderiam findar.
De repente, ouve uma voz feminina anunciar que o estabelecimento fecharia em cinco minutos. Desesperado para recuperar as muletas a tempo, Matheus desceu as escadas com uma velocidade espantosa. Ele mesmo considerou aquilo um assombro.
Enquanto descia o primeiro vão da escada, viu o seu ortopedista, mais sobressaltado ainda, e ele incentivava Matheus, impressionado com aquela habilidade sem igual para quem usa um Llizarov na perna inteira.
Ao chegar ao térreo, Matheus encontrou a loja fechada. Sem hesitar, quebrou a porta de vidro com um leve chute com a sua perna de aço, e conseguiu entrar. E claro, a segurança do shopping saiu em busca do arrombador. Desafiando o improvável, Matheus correu para tentar se esconder, e começou a explorar aqueles corredores singulares do estabelecimento.
De repente, Matheus se deu conta, abismado, que tinha recuperado a flexão de seu joelho direito; coisa estranha, já que antes aquilo era impossível de acontecer porque o Llizarov lhe tolhia esse movimento desde que o colocara, há quase seis meses.
Corria, corria e, vez ou outra, olhava impressionado para o seu joelho que voltava se movimentar novamente. Ficou tão maravilhado quanto que assustado com aquela situação surreal. Matheus conseguiu então se esconder em um espaço vazio que encontrou ao entrar em uma daquelas entrâncias do shopping.
O local parecia uma loja em construção. Matheus deixou as muletas encostadas em uma mesa. Nela havia baldes de tinta e as estopas sujas. Sem entender ao certo o que estava acontecendo de fato, saiu para explorar aquele lugar. Enquanto lavava o rosto na pia, notou que alguém se aproximava. De repente, surge em sua frente uma jovem, linda, de cara lívida igual a uma vela. Ele olhou assustado para ela e tentou explicar o porquê de estar ali.
A jovem pareceu não se importar com as explicações e seguiu seu rumo, desaparecendo em seguida, subitamente. Aquilo parecia um sonho, pensou Matheus. Ele retornou ao encontro com as muletas, apoiou-se nelas sob os braços e desceu uma escada de madeira artesanal, aquelas próprias de construção, e logo chegou à rua ao lodo do shopping - bastante movimentada por sinal - onde estava estacionado o seu carro, um Renault Clio, ano 92, de cor prata.
Meio desorientado, seguiu em direção ao veículo. Sem querer, enfiou a muleta esquerda em um cilindro cheio de cimento mole, que ali estava para tapar um pequeno buraco no asfalto. Ao tentar retirar a muleta do cimento, o cilindro veio junto. Tentou novamente se livrar daquele absurdo mas, dessa vez, a ponta de borracha da bengala se soltou e ficou encravada no cilindro. Sentiu-se constrangido com aquela situação, e ainda com os olhares e os risos do povo que passava pela rua.
Chegou enfim ao carro. Matheus se abaixou para retirar a borracha da ponta da muleta presa ao cimento mole, e notou novamente risos, vindos desta vez de duas crianças paradas bem ao lado da porta do motorista. Para ele, parecia que estava em um filme de David Lynch. Não entendia a situação. Curiosas, uma das crianças, a mais velha, aguardou Matheus a se livrar do cimento para fazer uma pergunta desconcertante a ele: “Ela quer saber (a menor) como o senhor consegue dirigir com esse ferro todo na sua perna”.
A pergunta ficou sem resposta. Matheus apenas esboçou um singelo ricto nos lábios, pediu licença a elas, abriu o carro, ligou a ignição e partiu daquele lugar sinistro.
Já era noite. Minutos depois de começar a dirigir, e ao chegar próximo ao final da rua, viu que havia um desnivelamento muito grande entre o asfalto em que ele estava com o carro, em relação ao do cruzamento a sua frente. Parecia impossível ultrapassar aquilo.
Como mágica, Matheus se põe em cima de uma bike, conseguida não se sabe de onde, e começou a pedalar, ainda que com dificuldade extrema por conta do Llizarov.
Não demorou muito, percebeu que os seguranças do shopping ainda estavam em seu encalço, há poucos metros atrás dele, e logo acelerou a pedalada. A rua era muito íngreme, mas, Matheus, incansável, ultrapassou aquele novo obstáculo.
Ao final dessa rua, o asfalto também acabava. Dali por diante teria de continuar a sua fuga sobre uma ponte de madeira. As frestas do piso eram largas. Apesar da estranheza daquilo tudo, ele continuou a pedalar, desta vez com mais cuidado para não cair no rio que passava embaixo da ponte.
Na metade do caminho, havia uma pequena cerca; coisa de meio metro de altura. Matheus parou, desceu da bicicleta, olhou para trás e viu que os seguranças do shopping estavam bem mais próximos do que ele imaginava. Rapidamente, passou a bicicleta por cima da cerca e seguiu seu caminho novamente. Não demorou muito, deparou-se com uma nova rua, desta vez asfaltada...
Continuou pedalando. Olhou novamente para trás e viu que um dos seguranças estava prestes a alcançá-lo quando, de repente, Matheus ouve, distante, uma música bastante conhecida sua: Even Flow... Ele abre os olhos, olha para o relógio TagHeuer, que marcava 15H35 e diz para si mesmo: Deixa eu levantar para comer alguma coisa.
Senta em sua cadeira de rodas, vai até a sua cozinha, prepara um café, lancha, liga o computador e resolve contar em seu blog como foi aquele seu dia.

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(*) O fixador externo de Llizarov foi desenvolvido, em 1951, pelo professor russo Gavrill Ilizarov, apresenta melhores condições de atuação nas patologias traumato-ortopédicas,  permitindo remodelamento, alongamento, correção de fraturas e deformidades ósseas.   

5 comentários:

Anônimo 21 de outubro de 2010 às 15:16  

égua eu só imaginando as cenas, por um segundo achei que fosse tudo baseado em fatos reais...principalmente a parte das crianças aparecendo do nada
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Anônimo 24 de outubro de 2010 às 15:55  

Queria me enganar, né baixinho?? hahaha

Lucélia

Anônimo 28 de outubro de 2010 às 11:58  

acho magnifico o poder do ser humano de se jogar de uma realidade a um sonho e levar o leitor para fantástica viagem da criação divina que é o nossso poder criativo, bjus e parabéns pela sua iniciativa.
emilia,
emiliabrito@ig.com.br

Kiara Guedes 11 de novembro de 2010 às 20:11  

Que os sonhos
Sejam sempre descobertas
Portas abertas
Para os outros que virão
E que neles
Sempre seja verão.

Bispa Sueli Silva 18 de novembro de 2015 às 15:46  

Eu também tenho uns sonhos assim, sonho que estou correndo, andando normal sem llizarov, não vejo a hora!!!

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